Uma frase pairou na minha mente durante todo o dia… Como um batuque no vácuo… “Não durmo nem espero dormir”… E concentrava-me nos pássaros a piar, na música do carro parado na estrada, nas palavras do artigo que lia… Voltava a ouvir: “não durmo nem espero dormir”… E como aquela canção, a última canção que se ouve antes de desligar o rádio, a canção que toca na barraquinha de bugigangas, a canção do anúncio na TV, como todas as canções de onde apreendemos apenas umas palavras, mas o suficiente para passar o resto do dia a cantá-la compulsivamente até nos fartar-mos de nós próprios… Como essas canções, eu passei o dia a lembrar-me: “não durmo nem espero dormir”… E tal como nas canções, em que só paramos de cantarolar aquele pedacinho, quando se ouve a música na integra e se aprende a letra, eu tive que procurar a origem destas palavras… Sabia que era uma poema de Pessoa, mas Hortónimo, Álvaro de Campos, Bernardo Soares, Caeiro… Não me lembrava… Tentava pronunciar mentalmente a frase até chegar às palavras que vinham depois… A principio nada… Mais tarde, e depois de repetir até já os termos não fazerem sentido, ocorreu-me.. “Pois não há sono no mundo.”! Não, mil vezes não! Esse é outro poema… “Não dormes sobre os ciprestes, pois não há sono no mundo.”. Mas encontrei, e agora posso aprender todo o poema… E posso tentar extrair uma mensagem… E posso parar de me lembrar insistentemente “Não durmo nem espero dormir.”. Certas pessoas dirão que não é por acaso, é porque o poema tem uma lição para mim… Eu acho que a mente humana tem manias estranhas, ou as canções também não são ao acaso?! Bom, se calhar nada é ao acaso e somos todos peões de alguém… Nesse caso suicidem-se porque a vida não faz sentido se não é nossa!
Aqui fica o texto…
Insónia
Não durmo, nem espero dormir.
Nem na morte espero dormir.
Espera-me uma insônia da largura dos astros,
E um bocejo inútil do comprimento do mundo.
Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite —
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!
Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!
Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.
Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.
Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.
Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.
Estou escrevendo versos realmente simpáticos —
Versos a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos...
Tantos versos...
E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!
Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir.
Sou uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma abstração de autoconsciência sem de quê,
Salvo o necessário para sentir consciência, Salvo — sei lá salvo o quê...
Não durmo. Não durmo. Não durmo.
Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!
Que grande sono em tudo exceto no poder dormir!
Ó madrugada, tardas tanto... Vem...
Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...
Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,
Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança,
Segundo a velha literatura das sensações.
Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.
O meu cansaço entra pelo colchão dentro.
Doem-me as costas de não estar deitado de lado.
Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado.
Vem, madrugada, chega!
Que horas são? Não sei.
Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,
Não tenho energia para nada, para mais nada...
Só para estes versos, escritos no dia seguinte.
Sim, escritos no dia seguinte.
Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte.
Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.
Paz em toda a Natureza.
A Humanidade repousa e esquece as suas amarguras.
Exactamente.
A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras.
Costuma dizer-se isto.
A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece,
Mas mesmo acordada a Humanidade esquece.
Exactamente. Mas não durmo.
Álvaro de Campos
segunda-feira, maio 01, 2006
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