sexta-feira, abril 06, 2007

"De súbito, deixou de existir! Caiu de rompante a certeza de ser um sonho! Não foi interpelado, não encontrou velhas memórias, não roçou novos caminhos da vida! Simplesmente imaginara, talvez por pressão do desejo! Estava atordoado mas com lucidez suficiente para perceber que não acordara com suores como nos pesadelos, mas sim com um ruído: o toque do telémovel. procurou-o na mesa mas não chegou a tempo... levantou-se do sofá onde se tinha deitado a espairecer o fim de tarde, e agora, com fome, pensou que o jantar lhe tinha telefonado bem a horas...

Sonhara com anseios seus, mas continuava a ser quem era... e como isso o incomodava, e como isso lhe pesava! Decidiu ser mais expedito e levantou-se, pegou na carteira e saiu de casa! 10 minutos para uma pizzaria e lá estava a comunicar com a dificuldade envergonhada do costume. - Queria que me entregassem uma pizza em casa - dava tempo de ir até ao multibanco - é nesta rua, no número 73, lá em baixo perto dos Correios!

- Em que nome fica?
- Zé!
- ... hmm... Sr José, posso saber o seu último nome?

- Pode - corou - Zé Ninguém!"
(Alcor)


Ninguém era apelido, mas não dos pais que os não tinha, e no entanto, sempre se conheceu assim... Ninguém… A senhora da pizzaria iria esquecê-lo 10 minutos depois do pedido, tal como o senhor dos correios, o do talho e a da mercearia… Como já tinham esquecido antes os outros funcionários de pizzarias, correios, talhos e mercearias de outros lugares.

Era por isso que Ninguém tinha comprado um telemóvel. De casa em casa queria ter a comodidade portátil de satisfazer as suas necessidades, sem nomes nem caras que não podia recordar e que, verdade seja dita, o assustavam com a sua presença física.

Neste lugar, Ninguém existia quase sem se notar…. Movia-se do banco de jardim, onde se sentava de dia ou de noite, olhando para um jornal que alguém abandonara, mas sem reparar no que estava escrito, para o seu quarto vazio e sujo da pensão do povo. Adormecer depois de uma garrafa de whisky, com os flashes da televisão sem som, era a melhor parte do dia. Era um alívio deixar temporariamente de existir, ainda que não tivesse consciente disso. Quando acordava, a sua existência era uma realidade e o desejo era o de poder adormecer de novo… Várias vezes tentou, tomando comprimidos para dormir que o deixavam atordoado por várias horas, mas nunca o suficiente para o descanso eterno. A sua existência consumia-o e impedia-o de se matar. E era isso que mais o corroía, condenado a penar pelo mundo, sem sentir o cheiro do mar ou das flores de Primavera, nem o sabor doce das tabletes de chocolate que ingeria apressadamente, a horas variáveis do dia, deixando os papeis espalhados pelo quarto. Não tinha nada de que se alegrar e ao mesmo tempo não havia coisa alguma no mundo que o comovesse. Já nem era capaz de acabar com a sua própria vida… Quantos anos mais deambular preso no seu próprio corpo?!

Ninguém no mundo o tem como amigo e ele próprio desistiu de tentar conhecer as pessoas muito cedo na vida.

Afinal nunca tinha vivido. O baque súbito da certeza que o acordara há minutos atrás era apenas a confirmação de uma existência de muitos anos em que nunca tinha vivido. Ninguém o esperava, à noite, quando chegava a casa. O seu telefone apenas recebia chamadas de publicidade ou de algum empregado avisando da chegada da sua refeição ou das camisas prontas na lavandaria. Não tinha caixa do correio nos quartos das pensões e também não precisava pois as contas passavam por baixo da porta. Ninguém sabia onde estava. Ninguém sabia quem ele era. Ele não sabia quem era. Ele não estava vivo.

No entanto, também não estava morto e mesmo a sua existência era duvidosa já que ninguém a podia provar. Apesar disso, à noite, na sua cama de lençóis encardidos, deitava-se no escuro e quando isso acontece deixa-se de sentir o corpo. E aí ele tinha certeza. Existia um ser pensante nele. Era a única coisa certa no mundo. Era isso que o colocava muito perto da morte, mas num “entre” que não o deixava dar o passo seguinte. Estava condenado a existir dentro dele próprio.
Tinha dinheiro para mais uns anos de existência, resultado do seu trabalho nos arquivos bolorentos de um tribunal. Durante três décadas na mesma cave sem janelas, era contactado pelo telefone para colocar as pastas no elevador que seguiam o seu destino. Nunca ninguém soube o seu nome, e não era necessário, as pastas chegavam sempre ao seu destino.

“Levanta tudo!” Não estava habituado a tais abanões no seu corpo, o que se estava a passar?

“Não te faças de parvo Zé Ninguém!! Passa para cá o guito!”

Não se lembrava de ter dito o nome àqueles sujeitos encapuzados e de navalha na mão, mas a proximidade com estas pessoas estavam a fazê-lo perder o controle. Gritavam, apertavam-no mas ele não se conseguia mexer. Desejava que deixassem as ameaças e que espetassem lentamente a faca nas suas vísceras para que pudesse sentir a morte a chegar lentamente, apercebendo-se de cada sentido que ia perdendo, de cada órgão que parava, para poder ter a certeza de que desta vez ia acabar o encarceramento. Mas uma morte muito lenta poderia dar tempo a alguém de o ajudar, e ter que ir numa ambulância com várias pessoas perto dele tentando salvar uma vida que nunca o foi, só essa ideia já o assustava. Não, seja uma morte rápida. Mas seja.

E a navalha tinha já lambido o seu pescoço com o seu fio aguçado, e o sangue formava uma poça em seu redor na praça da vila, os seus olhos estavam fechados e já nada viam, o seu coração tinha parado. E no entanto, nenhuma dessas alterações foi sentida, como se a morte fosse mais do mesmo e não propriamente o descanso final pelo qual ansiava. O seu corpo jazia no chão ignorado pelos passos apressados dos transeuntes da praça. Estava morto.

Foi Ninguém.
Morreu ninguém.

(Pediram-me para acabar a história de forma trágica... Quando olhei para o relógio tinha passado uma hora é nem dei conta do meu estômago me estar a pedir a segunda ceia...)

1 comentário:

Jóias de Sonhos disse...

Linda a história.
E lindos os comentários ao meu trabalho. Ás minhas queridas fadinhas.
Obrigada, e boa páscoa!

Bons sonhos