sexta-feira, junho 23, 2006

Tempo para "Ser"
Ontem o meu caminho emaranhou-se. Não apenas se bifurcou em duas estradas largas e bem pavimentadas mas os trilhos misturaram-se, mostrando carreiros mal definidos e outros meio obstruídos. Tive aquela sensação de estar sozinha no meio da multidão, por mais ninguém poder acompanhar os meus pensamentos.
E nisto ela canta…

Só hoje senti
que o rumo a seguir
levava pra longe
senti que este chão
já não tinha espaço
pra tudo o que foge
não sei o motivo pra ir
só sei que não posso ficar
não sei o que vem a seguir
mas quero procurar

e hoje deixei
de tentar erguer
os planos de sempre
aqueles que são
pra outro amanhã
que há-de ser diferente
não quero levar o que dei
talvez nem sequer o que é meu
é que hoje parece bastar
um pouco de céu

um pouco de céu

só hoje esperei
já sem desespero
que a noite caísse
nenhuma palavra
foi hoje diferente
do que já se disse
e há qualquer coisa a nascer
bem dentro no fundo de mim
e há uma força a vencer
qualquer outro fim

não quero levar o que dei
talvez nem sequer o que é meu
é que hoje parece bastar
um pouco de céu
um pouco de céu


(Mafalda Veiga, Um Pouco de Céu)

… E a vontade de partir à procura tomou, de novo, lugar em mim.E por que razão não fugimos nós e viajamos de cada vez a urgência de nos conhecemos e de obter respostas, nos assalta?! Uma das razões… Compromissos com a realidade. E por isso hoje, e face às numerosas queixas de “falta de tempo”, apetece-me falar das responsabilidades e tempos livres.

Uns entram para a escola com poucos meses de idade e outros começam apenas no 1º ciclo do ensino básico. Com maior ou menor investimento, tanto os jardins-escola como a escola “Primária”, oferecem às crianças actividades muito variadas e que apelam à criatividade. Eles desenham, pintam, fazem peças de teatro, cantam e ainda têm tempo para brincar sem lhes ser imposto um tema.

Quando chegam ao segundo ciclo, a coisa mais parecido que têm com isso é Educação musical e EVT (onde tudo está muito mais virado para a geometria, de carácter mais objectivo). No meu tempo ficava-se por aqui, agora parece que há umas quantas disciplinas novas que não sei de apelam muito a conhecimentos não-verbais. Mas lembro-me de voltar para casa frustrada por só me impingirem matéria e me dizerem o que fazer, e sempre que podia aproveitava para pintar, desenhar, fazer peças em barro e já não me lembro o que mais.

Pois, mas nessa altura havia tempo. Chega-se ao 12º com uma formação baseada em programas extensíssimos, que nunca são acabados, e com matérias estudadas para os testes e rapidamente esquecidas. Tudo isto tendo em conta que deixam de dar espaço para criar. Isso explica por que razão a maioria das baterias de testes de inteligência só medem atributos verbais, numéricos, visuo-espaciais, ou seja, apenas condutas cognitivas, deixando factores como a criatividade, de fora. Será que podemos dizer que o Joãozinho, com o seu QI de 70, é atrasadinho, só porque não tem jeito para português e matemática, quando na realidade tem um dom para o desenho ou para a pintura, ou constrói os seus próprios brinquedos, protótipos elaborados?!


Isto para dizer que a escola, não só nos bombardeia com material objectivo e tão sem aplicação que é esquecido e nem para cultura geral serve, como nos ocupa o tempo que poderíamos gastar sendo criativos, ou simplesmente fazendo coisas que nos são agradáveis (passear, estar com amigos, fazer desporto), coisas que contribuem para a nossa definição enquanto pessoas. Já repararam que as crianças passam cada vez mais tempo na escola? E tendo em conta a qualidade dos curricula que oferece, onde está o espaço para o desenvolvimento pessoal?

Bom, já me estou a dispersar do tema principal, o Tempo (ou a falta dele). Depois da escola, trabalho ou faculdade. Vou falar da faculdade. Normalmente tem horários flexíveis, mas e os trabalhos? Os apontamentos? O estudo? Com certeza vão ocupar as horas extra-curriculares. Nesta altura pensamos: “Que bom que era estar a trabalhar! Assim quando acabasse o dia de trabalho já não tinha mais nada para fazer e tinha sempre os fins-de-semana!”.

Pois, é verdade que normalmente não se traz trabalho para casa, mas passar dum horário de faculdade para um “nine to five job” (ou pior), muitas vezes longe de casa, o que implica horas perdidas em cansativos transportes públicos, ou no trânsito, não é fácil. Muitas vezes já se chega a casa tão cansado que não há disposição para fazer grande coisa. Então e os fins-de-semana?! Esses tornam-se nos dias de compensação em que se tenta fazer tudo o que não se conseguiu fazer durante a semana e nem sempre isso corresponde ao que realmente QUEREMOS fazer.

Mais tarde, as pessoas casam e têm filhos… É vê-los chegar a casa, dar banhos, fazer jantares, tentar brincar um pouco, mas “Oh não! Já é tão tarde e amanhã temos que acordar ás 6h da manhã para ir pôr os miúdos à escola e ir para o trabalho!”. :/

Os filhos saem de casa, os pais reformam-se. Agora sim, velhos e cansados temos tempo livre.. E entram em colapso! Tudo aquilo que sempre fizeram na vida foi trabalhar e agora?! O que fiz eu na vida? Estudei, trabalhei, tratei da família. Quem sou eu afinal?!

Quem seria eu sem a pintura, a fotografia, sem este espaço criado por mim para pensar, sem todas as coisas que gosto de fazer?!

Parece haver uma tendência para a estandardização, como se o sistema quisesse criar máquinas que consigam DECORAR os reis de todas as dinastias e as tabuadas. Parece que as actividades que nos tornam Pessoas, não cabem neste sistema.




Quero ter tempo para ser EU!!!

2 comentários:

Anónimo disse...

olá marialva...
Concordo com quase tudo o que dizes...mesmo pondo algumas (poucas) reticências. Como já te disse, acho que pensas por ti e que fomentas isso. De todos os erros em que nos inserimos e do percurso abrangente que vamos traçando, alguma coisa tem ficado em ti.
Um beijinho para ti e um abraço para o Agostinho da Silva....filósofo do viver, da bondade e da poesia.

Drifter disse...

As Pessoas são incómodas...